domingo, agosto 05, 2007

Amargo manjar dos deuses

Postado por Luiz Weis em 2/8/2007 às 8:03:36


jrnalista do Observatório da Imprensa

Refiro-me ao implacável retrato do Brasil traçado hoje -

despretensiosamente- por Nina Horta, cronista de culinária da Folha

sob o título, O MUNDO ATRÁS DAS GRADES



REFLEXÃO (cá entre nós)

Disse uma vez certo arquiteto, quanto mais os ricos se fecham em condomínios fechados, quanto mais se fechem as grades para uma suposta segurança, mais será cavado o abismo entre pobres e ricos e cada vez mais estaremos construindo uma nação onde há um muro explícito de individualismo, preocupação egoísta travestida de direito à segurança e onde quem tem muito julga que seus direitos são ilimitados. Desta forma, os meninos que jogam pedra nos gays e prostitutas, que põe fogo em mendigos, estão mostrando que sua humanidade é de outra natureza, e os que vivem fora dos muros onde cresceram, são uma categoria de seres de outro mundo, que lhes parece muito natural espezinhar, assim como em épocas medievais ricos senhores feudais, isolados em seus castelos, julgavam que os que lhes serviam existiam somente para tal fim, sendo muito natural dispor de suas vidas como um criador dispõe de seus bois para o que bem entender, até para diversão e saco de pancada. Mas tal afirmação recebe um novo viés na palavra desta mulher que escreve sobre culinária e tem acesso aos portões eletrônicos em vista de sua profissão. Ela mostra que há uma certa paranóia instituída, onde mesmo nas vilas de casas com sala cozinha e quarto, as pessoas estão colocando grades. Eu resisti muito a colocar uma cerca de ferro diante de minha casa. Quando casas bem mais humildes já ostentavam portões um tanto imponentes para o que guardavam, eu, após uns meninos terem invadido minha casa quando estávamos fora, coloquei a tal proteção. Mas olha o que ocorre. Enquanto meus vizinhos se fecham com portões eletrônicos ou passam cadeados o tempo inteiro, nós aqui teimamos em deixar o portão meio aberto, ninguém tem mais a chave do cadeado que o próprio também sumiu e por isso há uns pobres coitados que me incomodam às vezes vendendo coisas pra não pedir esmola ou até me aborrecendo, como um menino que usa drogas e veio bater pra pedir dinheiro com desculpas as mais variadas, por umas cinco vezes em curto período. Eu nunca o tratei mal, só que finalmente expliquei pra ele mais energicamente que não lhe daria tal valor porque ele estava abusando. Mas graças a esta minha teimosia, eu já tive oportunidade de ver lindos sorrisos de vendedores, crianças, rapazes e toda a gente que quando bate à tua porta está ainda com esperança de não vê-la bater em sua cara. E eu que já levei uma inesquecível dessas, numa ocasião em que estava deseperada e sozinha num prédio estranho, depois da meia noite e com três filhos pequenos, nunca poderei fazer o mesmo. Era um casal que me negou qualquer auxílio por se sentir no direito muito alardeado por aí , em slogans e gritaria, de sequer me olhar direito, isso que eu estava com uma criança de quatro anos na mão. E como fala a cronista no texto abaixo, de alguma coisa teremos que morrer, de pneumonia ou catapora, de câncer ou de tiro, que diferença faz? Porque se todos continuarem a negar um mínimo de seu tempo e de sua boa vontade aos que estão do outro lado das grades, então não haverá mais esperança, não haverá nem palavras, nem lutas, nem gritaria que resolvam. Não seria muito mais bonito se, ao invés de as pessoas se unirem pra bater, pra xingar, reclamar direitos, dizer que estão cansadas, cansadas? De tanta solidão, de tanta má vontade, de tanto egoísmo? E se todos resolvessem dar uma trégua, arriscar um pouco dessa sua segurança infeliz e estéril para que algo possa REALMENTE mudar?

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O MUNDO ATRÁS DAS GRADES

(NINA HORTA)


Resolvi andar um pouco a pé, ir até o supermercado. No meio do caminho, não tinha uma pedra, uma pedra, mas senti uma estranheza que custei a identificar. Quando eu passava em frente aos portões, soava um alarme e luzes se acendiam. Fiquei brincando de gato e rato com as portas tão sensíveis, mas foi me dando uma raiva burra. Acreditam que me senti excluída e empurrada para fora daqueles prédios?
Não deveria ter sido surpresa. É que sou muito distraída. Quando vou a uma festa feita por nós do bufê, passo por problemas incríveis. Basta o porteiro enxergar uma velha de cabelos brancos que se diz cozinheira, na chuva, sobem-lhe à cabeça suspeitas terríveis de assalto e mulher-bomba. Escondido atrás de um vidro blindado fumê, pede a identidade que devo inserir numa fenda, de onde cairá na caixinha dele.
Começo a vislumbrar, atrás do escuro, um sujeito atarracado, mordendo a ponta da caneta, olhos entrefechados. Escreve e lê com dificuldade. Acho que tão avançada técnica contra ladrões mereceria um Nero Wolfe, um Perry Mason, um Sherlock. Inúmeras vezes já cansei ao ser recolocada numa segunda jaula, e daí desisto. Brado: "Não entro, mas não tem festa". Costuma ser um abre-te sésamo. O engraçado é que, todas as vezes que consigo chegar, adivinhem quem já está lá me esperando há 40 minutos? O senhor Zé, nosso motorista de longa data, que tem a maior cara de mexicano, bigodes revirados e olhar furtivo.Ele, sim, sabe das coisas.
Claro que entendo que a segurança é necessária. Mas o problema que tenho para aceitar as ruas fechadas... As ruas do meu bairro, as vilas do meu bairro. Onde foi parar o meu bairro? Que droga. Fico pensando assim. Se tenho que morrer de pneumonia, catapora, sarampo, dengue, morro de ladrão, mas não abdico da rua. O que perderam meus netos por não conhecerem seus vizinhos? Por terem perdido dona Judith, que fazia gefilte fish, dona Hermínia, que recheava alcachofras com a farinha de pão e as fritava em azeite? Dona Conceição, que era especialista em doce de tomate? Sem contar dona Seraphita, com suas inefáveis balas de ovos. Vocês não imaginam o que eram as balas de ovos portuguesas da dona Seraphita, que não tinham nada a ver com estas que comemos hoje, com cascas duras como vidros. E com a irmã dela aprendi a comer sanduíche de chocolate e de uvas. Sem contar Natália, a italianinha, esta sim, que me deu o maior prazer de todos, ensinando-me furtivamente como se fazia um sanduíche de alho cortado fininho, um pingo de sal e bastante azeite. O meu bairro era a ONU, era o que nos transformava em cidadãos do mundo, era o que nos ensinava a enfrentar a vida de patins e bicicleta, era o mundo lá fora que trazíamos para exame dos pais. A rua educa, todos misturados na mesma tigela. Era preto e era branco, amarelo, pobre e rico, vendedor e comprador, sem zumbidos de grades excludentes.
O que mais me irrita é achar que por trás disto tem um pouco de sentimento de status. Se os muito ricos se fecham atrás de grades, nós também devemos nos fechar, no que nos enganamos. Naquelas casas onde há seqüestráveis de verdade não se percebe a segurança. Invisível.
Atrás do bufê há uma vila. As casas são simpáticas, geminadas, uma boa sala, cozinha e quarto. Pois não é que puseram um portão de um lado e outro de outro na vilinha? Não podemos mais dar uma volta no quarteirão sem um guarda que abra os portões desconfiados.
Bairros são o mundo em pequena escala, são a primeira inspiração de nossas vidas. Olhem só o nome dos tangos. "Mi Viejo Barrio", "Los Cien Barrios Porteños, "Esquinas Porteñas", "El Barrio", "De mi Barrio", "Cuando el Barrio se Duerme", "Compadrito de mi Barrio"... Sem falar em Jaçanã e Copacabana. Derrubemos los portoñes!
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