sexta-feira, março 23, 2007

CENTAURO CIBERNÉTICO

Já vai longe o tempo em que os seres humanos tinham uma só classificação, a de homo sapiens. Com o advento da cibernética, tal criatura foi-se tornando um híbrido, algo como aquela figura mitológica metade homem metade besta, mas com a agravante de agora a parte não humana ser constituída por uma reles máquina chamada computador. Os novos centauros são seres cujo corpo une-se à máquina pelas mãos e pela mente.Esta nova condição permite ao novo centauro imaginar que está em comunicação com o mundo inteiro, visto a poder falar com pessoas a quilômetros de distância, executar compras sem sair de casa, ter acesso a todo tipo de informação, leitura, além de lançar aos quatro ventos suas idéias em blogs, sites e tendo ainda milhares de opções de lazer, informação e relacionamentos. Entretanto ele está dentro de uma sala e tudo que tem é uma tela diante dos olhos, olhando com seu olho de máquina impávida e fria. Falar em solidão no virtual é ser solitário em dobro. Diante desta tela e teclado, estamos sempre sozinhos e na melhor das hipóteses, com a ilusão de companhia. As amizades existem no antigo modo condicional do verbo, se eu um dia, quando tu qualquer hora, sempre que nós, talvez ainda hoje, quem sabe. Na melhor das circunstâncias teremos um amigo flutuante, cujas respostas dependerão sempre de muitos senões e dificuldades. Nossa ansiedade na expectativa de um sinal aberto, de uma palavra que denuncie a tão esperada mensagem, fará nossas mãos tremerem e errarem a tecla, nosso nervosismo em buscas estranhas fará nossa adrenalina exacerbar e, sem conseguir descarregar toda essa energia convocada, teremos o humor alterado em agressividade que poderá voltar pra dentro da telinha, atingindo um alvo qualquer. Há pessoas que se dizem imunes àquilo que chamam de picuinhas, discussões inúteis, lavação de roupa suja. Mas para atingir tal condição, ou não interagimos com ninguém, o que é quase impossível, ou ficamos abanando a cabeça como vaquinhas de presépio que a qualquer toque ragem de forma sempre idêntica e mecânica. Já temos aqui nossa imagem bastante incompleta pela ausência da presença física, com todas as informações que ela traz, com sua cor, som da voz, movimentos e vida. Aí viramos uma foto, quando ela existe, que manda beijinhos, diz olá, faz versinhos rimados, enfim, criaturas que relegam sua humanidade ao quartinho dos fundos, colocando na sala de visitas uma cópia de si mesmas feita de material sintético que emite letreiros repetitivos. Aí está o homem, a pessoa humana reduzida a mero robô- papagaio, um louro virtual cujos sentimentos expressam-se de forma pasteurizada,repetitiva, visto que estão acionando somente o compartimento para contatos superficias e descompromissados, onde há umas vinte fórmulas com as quais o robô pessoa interage com seus "semelhantes".Vivemos então de esperar e lançamos nossa voz pra dentro da escuridão desta noite de breu. Como numa pescaria em águas desconhecidas, lançamos nosso anzol que voltará vazio muitas vezes, o que não será compensado pelas raras presas que eventualmente nos reservar. Receberemos peixes imprestáveis como uma página que se infiltrou em nossos domínios,ou comerciais e tantos outros conteúdos que circulam sem se chocar. Um trânsito caótico mas onde nada colide com nada. Não há regras na forma de passear por aí. Tudo se movimenta e, na nossa mania de colocar as coisas em compartimentos, diremos "desse lado tem isso"," vou para mais longe", numa tentativa inútil de "organizar" o caos em nossas mentes, o caos de bilhões de assuntos, sob as mais variadas formas. Se você resolver acampar em algum sítio, tome cuidado. Nada do que parece é nestes domínios. A começar pelas classificações apresentadas, possibilidades vislumbradas em anúncios, criaturas e ambiente de confraternização. Principalmente se você resolver assumir posturas mais explicitas sobre qualquer assunto polêmico. Aí o caldo entorna. Se aqui fora, tal ação já porduziria seus estragos, no mundo dos IPS esta temeridade será sempre brindada com safanões, xingamentos e cobranças de indignados seres que virão te exigir satisfações. Você terá os aplausos também, sempre há quem apóie nossas posturas, mas não conte muito com isso . A maioria dos seres que aqui navegam, tendem a preferir uma flutuação patética onde o que menos importa é a coerência, a tomada de posição e uma atitude compreensiva de apoio a quem cair em desgraça. Conte com um ou dois apoios, dê-se feliz por poder desabafar um pouco e sentir esses pontos fixos imaginários falando com você como uma pessoa.Neste verdadeiro vale-tudo interativo, toda temeridade lhe será cobrada. Então você terá o direito de permanecer em silêncio e tudo que disser será usado contra você.

LA TUCANITA

Caramba, como dizia meu avô, xô égua,como dizia meu pai, ach tu liebe tzeit, como dizia minha vó, ach tu liebe Got noch ein mol. E como diria meu avô italiano: ma oggi io iré contar la storia de una múlie vechia que sara la chefa di noi gauchos, fara los bombachas de troxas. Mas meu idioma preferido é mesmo o portunhol, falado na fronteira gaúcha com os países do Prata, hombres machos del Rio Grande que irán obedecer a la entojada y trocar las botas y bombachas per un saiotito paulista. Hay que combater las pragas tucanitas en Rio Grande do Sul, pero jo que no cria en brujas, ahora, vendo tal candidata, no só lo creo, como tengo certeza que las ay. Si,si,el "capaceton" es también el clone, que ao deitar-se, jo tiengo certeza, retira la peruca y la mascara, después apierta el botonozito de off, passa oleo al cuerpo y vuelve per la capsula de energización. Ya la viste faciendo tiau, abanando com la mano? Me parece que fué desmontada y después la montaram mal, aí quando ergue el braso, lheva arriba todo el tronco, e el resultado: vien a parecer una marionete empalhada.Qué lastima! Los gauchos quieren mismo un gobierno moderno, tanto que terán como gobernante un robot feminino, cosa inedita en la ciencia hodierna. Los bravos gauchos iran dançar la conga en logar de "el pezito" ou la "chula" mui mascula. Ella gobiernará con manos de ferro, pero literlamente, dado su natureza robotica. Margareth Tatcher, a su lado, va parecer mucho femenina y suave. Ya la vejo entrando al palacio y los lacaios gauchos estendiendo el tapete rojo. Nadie de chimarron, que nojo! Ella solo bebera mineral francesa, como su companero Maluf. La residencia sera redecorada y adaptada para conter tal entidad. Una camera de energización sera instalada al lado del gabinete. No serán recebidos estraños sin una revista apropriada. Finalmente, los hombres obedecerán sen un pio e quando Rigotto ou Simon aparecerem, aguardarón sentados. Nuestra prima gobiernante mujer, como era esperado, es mas mascula que muchos hombres.E no se surpreendam si, al correr del tiempo, tendo vendido todo el patrimonio estatal, sucateado la UERGS y los projetos sociales,ferrado con lo que resta de la agricultura, continuado con el misearable plano de Rigotto,del plantio de especies destruidoras del solo para favorecer quien pode comprar tierras y tener lucro facil, sin gerar empregos, vengam a decir que la corrupción de Lula dechó las finanças del Rio Grande em estado lamentable. Pueblo gaucho, ustedes serán atropelados por un tsunami y non perceberán de onde hay sido arremessado, tal vossa ceguera. Y ahora, voy a descansar, porque escribir al portunhol, una lingua muy falada al Rio Grande, en sus fronteras, me dechó derrubada. Mas solo una cosita más: los gauchos, elegendo tal mujer, no olvidarán jamás tal acto. Y estarán a confirmar, realmente, que tienem Coca-cola nas veias, un cerebro de fast-food, estomago de avestruz y uno corazón de latinha di cerveza. Sin hablar en la miopia cronica y en un defecto de fabricacion qui los deja incapacitados al julgamento mas simples. Una revolucion de los tiempos hodiernos. Viva la modernidad, viva el sucesso de los medios massivos de comunicación. Ustedes fizeran un belo trabajo! Derecha, volver! !

AS TRÊS MARIAS

Carta a um amigo.Sinto muita falta da Maria Pândega, mas ela sucumbiu à Maria menina e está presa e inibida por este momento político. A Milu, meu lado dona de casa e mãe, está um pouco amuada, apesar de tentar manter a menina sob uma certa proteção, tentando evitar muita afoiteza, que sua experiência sabe ser arriscada. Mas a atual Maria-menina-querida-do-papai domina a cena."Eu, Maria, desde criança, quando meu pai me levava aos comícios naquela cidadezinha quase aldeia de minha infância,sabia que , mais que os guris da casa, era eu sua "herdeira", no que ele sentia como exercício de cidadania, apesar de nunca ter ouvido falar disso. A palestra do governador era acompanhada pelo rádio, sem uma palavra, por esse estranho grupo, meu pai, meu avô e eu. O Rio Grande em três gerações de resistência." É difícil não ceder a esse lado "afetivo" de nossa formação e assim, quando surge a hora de entrar na peleia, a Maria criança toma conta e dita as ações. E através dela, revivem meu avô, bisavô, meu pai, toda a indignação que os movia a querer defender o país das investidas estrangeiras, haja visto que o Rio Grande sempre teve brigas de fronteira. Mas principalmente o espírito dos ventos franceses que haviam deixado seus vestígios, liberdade,igualdade, fraternidade, ideais que emocionavam e uniam pessoas sob a mesma bandeira humanitária. E a Milu foi descartada. A Maria crinça que manda os emails pra ti, é uma brasileira bem intencionada e que procura se informar do que acontece por aí em fontes mais seguras. Mas ela entende a dificuldade de pessoas que não tiveram a mesma vivência e oportunidades, em assimilar este momento histórico.A Maria menina-mulher sobe à mesa para dançar, como nos carnavais distantes,sob o olhar dos adultos admirados. Não quer mordaças, sua avidez não entende entraves. Instintivamente, fareja a grandeza de rostos torturados pela miséria e a sordidez do lucro fácil. Na sua velha casa sem conforto, a melhor fortaleza que uma criança podia encontrar: dignidade, exemplo, muito amor e generosidade. A menina subterrânea não espera ser chamada. Ela aflora e assume seu lugar. Ela é capaz de morrer por suas convicções e por isso mesmo sentirá o peso do desprezo. Nada resolverá quererem impor a ela qualquer caminho. Ela aceita dialogar, mas não aceita mordaça. A pedra em que foi forjada tem a capacidade de transmutar-se em matéria fluida. Assim, alça vôos de superação, paira acima da rigidez dos regulamentos e ressurge como recém-nscida.Jamais esperem dela apoio a atitudes preconceituosas com os mais humildes. É muito fácil pisar em quem não tem nada. É muito covarde tripudiar sobre as mazelas do povo. Nós intelectuais de merda, não temos o direito de fazer texto-deboche sob nenhuma condição. Fere por demais a sensibilidade da criança que mora em mim, ver os achincalhes nessa pretendida literatura que traz o ranço do preconceito social, disfarçado em luta pela moralidade.Essa menina está sempre pronta a usar sua espada, mas logo, logo, voltará para sua trincheira. E aí faremos uma trégua. Até quando? Talvez por pouco tempo.Na velha lua traço meu caminho,na lua nova, ergo minha espada!Abraços da Pândega, da Milu e da atual mulher-menina.PS.: Não condeno tua opção política, visto ser uma decisão que parte de uma pessoa bem intencionada e de caráter, mas não aceito aqueles que se arrogam o direito de julgadores e se lançam como paladinos da moral e bons costumes, cheios de rancor e preconceitos, aliados a uma servilidade crônica de subalternos covardes esperando a esmola. Mas piores que estes, são os que rejeitam seus irmãos mais pobres por puro esnobismo, uma pequenez de espírito que revela a sordidez do ser humano em pessoas travestidas de bem educadas, boa família e que tem nojo de tudo que não seja FTP. Para eles, a Maria menina reage com umas bulitas arremessadas por sua "funda"(bodoque).Acabou de imprimir-se. 23 de outubro de 2006

DO APLAUSO DESVAIRADO AO SUMIÇO SEM DÓ

Aqui no mundo virtual é como no real, me dizia um amigo que conquistei nestas paragens. Sinto ter que discordar. Aqui é bem pior.Explico. O maior problema que encontro não são os chamados psicopatas ou sociopatas que alguns acusam como perturbadores e criadores de situações complicadas, até coisa bem píor. Isso até existe, mas como no mundo real, em proporção bem reduzida comparada ao número das chamadas pessoas normais.O maior problema está justamente neste grupo considerado de conduta adequada, pelo menos à primeira vista. Pois as chamadas pessoas normais compõe-se das mais variadas criaturas, em termos de idade, nível cultural, interesses, crenças, atividade política, sem falar nos aspectos psicológicos e sociais, onde teremos sérios candidatos a mau caratismo, individualistas doentios, desonestos em geral, aproveitadores, exibicionistas, egocêntricos, e a lista fica bem grande. Longe de mim querer pousar de santa coroada, que não o sou. Mas posso afirmar que o que tenho visto em termos de condutas estranhas por aqui, daria para escrever um livro.Tive pretensos amigos que descartei, tive fãs declarados, fãs desvairados, recebi xingadas de pessoas desconhecidas, declarações de apoio inesperadas. Outro dia uma escritora disse que eu ia virar personagem de um livro dela. Por conta da indignação que sentiu quando fui atacada por outra recantista, ela me contou que escreveu um poema. Se a gente não estiver bem firme da cuca, pode até surtar por conta de tantas situações em que a perplexidade quase nos deixa paralisados. Eu estou sentindo tal pressão. Fico admirada de ver pessoas dizerem que pra elas aqui é tranquilo, que elas escrevem lá suas coisas, não mexem com a vida dos outros, e tudo corre normal. Mas as coisas mais loucas que me ocorreram, foram por conta de pessoas que elas sim, se meteram na minha existência, para o bem ou para o mal. E não falo daquelas raras com quem tive diferenças por formas de encarar certos acontecimentos. Falo de gente que caiu do céu mesmo e me achou.Certa vez uma menina de catorze anos, fez um comentário em caixa alta dizendo que eu era isso, a melhor , por que eu ainda não tinha editado, e tal, que era minha maior fã. Passado esse dia, nunca mais apareceu. Outro dia vivi um momento inédito em que um fã me contatou da forma mais inseperada. Estou contando tudo numa crônica que ainda não foi publicada. E a história, diante da minha enésima perplexidade, terminou sem nem sequer um bilhete de adeus. Ele sumiu nas ondas da NET assim como surgiu, como um ser de outra galáxia que fizesse comigo um daqueles contatos diretos e depois sumisse com sua nave na escuridão do espaço.Entretanto e isso é o que conta, recebi muito de algumas poucas pessoas, mais do que poderei lhes dar, tenho certeza. Acho que um pouco do meu êxtase se deve a um temperamento um pouco exacerbado, latino, apesar da mistura de raças que me produziram. Tenho o gosto do drama, sou eloquente e apaixonada nas contendas.E agora sou mais uma das milhares de pessoas nesta rede de interloucos que, após ter sido lançada às alturas por uma pessoa totalmente empolgada, vê-se completamente abandonada por esta mesma criatura, sem nem sequer um lencinho branco de adeus.Por outro lado, fica muito engraçado ver que todos os sítios onde se reúnem e convivem muitas mil pessoas, apresentam ao candidato seu regulamento. Mas o pior acontece apesar dos regulamentos. Nâo há regulamentos que impeçam pessoas de te fazer de boba, isso não consta nas regras, de te acenar com uma possibilidade e depois sumir, de te declarar leitura eterna e dias depois auto deletar-se. Não há regras que façam as pessoas ficarem mais honestas,mais críticas, mais inteligentes, mais cultas, mais verdadeiras. Pessoas de verdade e não simples internautas carentes desejosos de encontrar alguma audiência ocasional. Não há leis capazes de fazer tais milagres. O problema está mal enfocado, quando normas passam a ser a coisa mais importante em um agrupamento. A partir daí aprende-se que nestas paragens a maioria das pessoas sente-se na liberdade de não cumprir nem as mais elementares regras de convivência e boas maneiras, que dirá outras que envolvam dignidade, posturas coerentes e compromisso com princípios. Aí já seria querer demais!!!

ESPIRRANDO OS ESTORVOS

Essas epidemias de gripe, atribuídas ao período de inverno são, principalmente, as epidemias de carências que afloram, o fluxo e refluxo das almas em suas eternas agonias de mares bravios, e os espirros querem pôr pra fora, com mais ou menos veemência, as coisas que nos atormentam, aquilo que queremos expulsar para nos sentirmos livres de "incômodos" que estamos tendo que suportar. Então, atingido o limite do suportável, desencadeia-se o processo de gradativa volta à normalidade.Depois de ter espirrado um fim de semana inteiro, espirros terríveis, mas que, segundo uma vítima deles, dão uma sensação de orgasmo, acho que encontrei finalmente a "paz" na segunda-feira, tendo "espirrado" pra fora de casa toda a família, e me sentindo maravilhosamente sozinha. E o seria completamente, não fora a presença do meu gato preto que ainda é um estorvo onipresente.A gripe é muito providencial. Ela vem pra nos ajudar a dar nome a nossa irritação, ao nosso desconforto gerado por desejos nunca satisfeitos, ela "autoriza" até o mau humor. Justifica todos os chutes no gato e na porta, sem falar na finalidade de espantar uma companhia indesejada. Ela te faz poder estar presente sem "ter" que fazer uma porção de coisas não desejadas. Ninguém te convida para ir àqueles lugares que tu detestas, ninguém te diz pra colocar tal roupa ou pentear melhor o cabelo. Tu ficas simplesmente livre no recinto sagrado do lar e tudo que fizeres vai ser apreciado como um "sacrifício", mesmo que, sendo dona de casa como eu, a comida venha de fora e tu não cumpras a maioria das tarefas rotineiras.Por isso não há remédio pra curar a gripe. Ela vem pra nos ajudar e não devemos varrê-la tão afoitamente. É ela quem nos cura e vai embora quando "queremos", mas com aquele querer mais escondido, aquele que sabe das nossas verdadeiras necessidades.

A VERDADEIRA LIBERDADE

Na semiobscuridade as palavras bailam entrecortados ritmos, enquanto o ar se torna pesado e os gritos de pássaros distantes ressoam qual ameaças de mau agouro. Sentimentos estranhos fogem de seus domínios e ganham vida própria. Ódios esverdeados, tristezas azuis, paixões escarlates, desprezos amarelos, indiferenças acinzentadas, iniquidades desbotadas. Estão todos à solta, enquanto o homem dorme. Estão todos livres para a loucura permitida do sonho. Palavras dirão o indizível, sentimentos caberão em todos os recantos, o ódio e o amor farão sua aliança, enquanto o monstro censor faz um cochilo. Uma linda criança brincará perto do lago, a bela criatura de olhos verdes e corpo de borboleta dançará entre as folhagens. Uma grande máquina de lavar poderá vir com seu passo arrastado ao nosso encontro. Poderemos voar sobre planícies, vendo o sol nascer lá atrás das montanhas. Sentiremos medo, talvez, em algum momento. Mas logo reagiremos virando a página...Poderemos conversar com quem já se foi desse mundo, ver seus rostos bem compostos, rindo pra nós, nos confortando. Veremos cores e formas estranhas, árvores carregadas de frutos magníficos, casas de outros tempos ou de tempo algum.O sonho é como um grande rio onde todos se banham. E nele estamos todos unidos por uma energia ancestral que habita dimensões desconhecidas pela mente desperta. Nossos sentimentos passeiam livres e tomam formas estranhas. Assim, estando muito carentes podemos em sonho ser abraçados estreitamente por uma pessoa querida. Estando enraivecidos, podemos deparar-nos com uma fera tenebrosa. E sentindo saudades de outros tempos, lá nos vemos passeando e rindo com amigos ausentes.O sonho desconhece as fronteiras, não tem nenhum requisito pra existir. Sua força nasce das profundezas de um insondável desconhecido. Neste um terço de vida em que passamos dormindo, muitas vidas paralelas coexistem com o nosso ínfimo estar acordados, pensando no trabalho, no que vamos fazer no domingo, a quem vamos agaradar, qual o destino que daremos ao dinheirinho que pintou. Sonhar é estar em contato direto com o mistério mais recôndito do existir. É estar ligado ao imponderável, ao mais maravilhoso exercício de liberdade. Sonhar é mergulhar em águas calmas, é ser levado por um mar revolto com leveza, é andar em passadas largas e leves, sentir com muita força e abandonar sem receios o nosso corpo pesado.Ao sonhar, nossa individualidade se anula, o sonho é a maior expressão de interação entre os indivíduos e num instante podemos ser nosso vizinho e ele, o cachorro vira-lata que anda pelo bairro. Podemos amar nossos inimigos, apaixonar-nos pela pessoa mais desprezível, dizer coisas horríveis a nossa mãe. Mas tudo tem sua razão de ser, mesmo as coisas aparentemente absurdas.Fechar os olhos e dormir é o grande mistério dessa existência, é a hora em que vamos ao encontro de nossa verdade mais escondida, é quando verdadeiramente acordamos para o universo e seus mistérios, é quando mansamente, mergulhamos na eternidade.

ELES NÃO SE DEIXAM LIBERTAR FACILMENTE

Os tupiniquins e os tupinambás eram os primitivos habitantes na região central do país, onde aportaram os portugueses pela primeira vez. Hoje eles não são muito lembrados , apesar de a língua tupi ainda estar presente mais do que muita gente tenha conhecimento, no idioma português. Infelizmente, dentro de uma visão racista em relação aos índios,adotou-se o epíteto tupiniquim, para designar o que há lá fora e que, transposto para nossa realidade, sofre uma espécie de mutação para pior. Passamos assim, a ter atitude depreciativa de dominados,em relação à nossas características particulares, em uma atitude depreciativa de quem só valoriza o que vem de países ricos.Até a segunda guerra macaqueamos a França, que pelo menos nos ofereceu um modelo com melhores valores. Depois a "América" passou a dominar, impondo sua modernidade predadora. Era um progresso que deixava a todos embasbacados e pelo qual a natureza ainda paga um alto preço. Eles se autodenominaram assim, numa demonstração de dominadores. Outro dia um garoto me falou que sendo apresentado para uma norteamericana ela teria dito:I'm american, ao que ele respondeu: I'm american too, from South America. Ela teria olhado pra ele de forma estranha sem comentar. Nada contra a menina, ela só reflete uma mentalidade e uma maneira prática que eles tem de ver o resto do mundo, tudo são "business", "money", nós somos grandes, a América somos nós, fomos ao Iraque para salvar o povo tirando-o das garras de Saddan. Conta-se que ante a resistência de um iraquiano em receber ajuda de um soldado, este teria comentado: "os iraquianos não se deixam libertar facilmente."O neoliberalismo nasce dessa mesma visão de"liberdade". Desde que o mundo é mundo ,sempre houve houve opressores e oprimidos. Nem as maneiras de estabelecer esse domínio mudaram tanto. Assim fizeram os romanos em relação à Grécia e os portugueses, no momento em que começaram a explorar as riquezas do país, a partir de 1700. A receita é a mesma: impõe-se a língua do vencedor e a partir daí passa-se a um trabalho de desaculturação para facilitar o domínio. Em nosso país, enquanto não havia aqui interesse comercial, falou-se a língua tupi. Mesmo o padre Manoel da Nóbrega, falava fluentemente essa língua. No início do século XVIII, com o incremento da exploração de minérios, pedras preciosas e outras riquezas Portugal exportou para cá seus escrivães e outros funcionários encarregados da coleta e exportação dos produtos.Estes falavam e, principalmente, escreviam o português. Assim, aos poucos, a língua indígena foi se recolhendo para sítios mais restritos.Os nossos "libertadores", através de políticos e imprensa engajada, vem alardeando há tempos a idéia de que os governos devem privatizar empresas estatais porque só trazem prejuízo. Assim, já nos livramos de vários desses chamados entulhos sem ser comprovado nenhum resultado. Ao contrário do que se argumentou a favor dessas transações, no auge da euforia no primeiro governo de FHC, a dívida só fez aumentar, passando de 500 bilhões para o atual um trilhão.Nesse trem da alegria, vendeu-se um empresa como a Vale do Rio Doce ,em 1997, numa legítima ação de entreguismo,por três bilhões e meio, quando ela, só no primeiro trimestre daquele ano, faturara essa quantia. Em outubro de 2005 a juíza Selene Maria de Almeida resolveu abrir um processo de anulação da referida venda, sob alegações inquestionáveis. Em dezembro do mesmo ano conseguiu reabrir o processo que agora deve começar a ouvir testemunhas. A primeira acusação é que a empresa encarregada de fazer a avaliação, a Merrill Linch, era ligada a que comprou, tendo passado a ela informações sigilosas e subavaliado a empresa.Além disso, cita-se a participação do Banco Bradesco como consultor e que mais tarde viria a tornar-se acionista. Outra irregularidade refere-se à venda de 26 milhões de hectares, o que fica muito além dos dois mil permitidos, sem que se passe pela aprovação do Congresso. Além disso, a presença de urânio nos minérios extraídos, por si só, deveria sustar a venda, lembra a juíza. Sem falar no dinheiro do BNDES do qual quatro diretores estão respondendo a processo por conta dessa ação. Na éoca lembro que houve um espernear em forma de liminares partindo de entidades, políticos, partidos e outros interessados mas bem ligeiro tudo foi superado e se entregou à sanha de estrangeiros uma empresa prontinha, sem falar na venda de nosso subsolo, cujas riquezas são imensas em vários tipos de minérios. Foi tudo rápido e de um silêncio conivente. Parlamentares que agora vêm colocar o dedo na cara dos atuais detentores do título de ladrões, já fizeram por merecer, apoiando essa transação vergonhosa. E o povo, como sempre, canta conforme a música , dando eco à sinfonia do momento. Bem ao gosto de quem quer deixar o debate no nível de confronto moral, com um sem fim de escândalos. Marcos Valério não é novo no cenário da república. Isso ficou bem claro em suas declarações. E a gritaria providencial deixa a gente tonto e dificulta outros questionamentos, principalmente este, um legítimo atentado contra a soberania nacional. E não faltou nem a piada para entreter por semanas o imaginário popular, com a história do dinheiro na cueca. Assim também se oferece circo para o povo que, como as ovelhas de Orwel, fica rindo e repetindo bé, bé, bééé...O presidente FHC prestou seu grande desserviço à nação, para usar uma palavra mais branda. Teve o seu momento de glória, que mais tarde comemorou inaugurando um apartamento, onde os móveis eram todos do séc. XVII. Coisas de gente culta e refinada que a plebe não sabe apreciar.Mas o que se vê em todo mundo é essa febre de fazer dinheiro com dinheiro, grandes empresas como a Nike engolindo outras também grandes, numa antropofagia assustadora que põe na tela arrepiantes previsões dignas da mais audaciosa ficção científica.Recebi outro dia um email onde um professor da USPdeu-se ao trabalho de achincalhar o atual presidente com argumentações no mínimo impróprias para um catedrático de tão alto gabarito. Entre outras coisas, disse que Lula é o Forest Gump tupiniquim e faz sucesso lá fora como raridade, tal qual o mico leão dourado. O dito professor de biologia encarnou bem o espírito do dominado que olha com inveja e cobiça para aquele mundo do hemisfério norte , e que depois de tantos cursos de graduação pensa que transformar o intelecto num banco de dados é o que torna uma pessoa superior à outra. Também comete racismo, depreciando a cultura indígena,ao usar a palavra tupiniquimde forma pejorativa. O presidente Hugo Chavez tem recebido seu quinhão de desprezo, só porque , como aquele iraquiano, não se deixa libertar facilmente, imaginem, aquele índio com cara de pobre, "quem ele pensa que é?"Tenho no meu quarto um balaio feito pelos índios. Deixei –o num lugar bem visível e nunca esqueço daquela mulher de olhos puxados no meu portão com um menino num braço e o tal balaio no outro. Aquela gente jogada pelas calçadas um dia foi dona dessa terra e não precisava mendigar para viver. Nós ainda trazemos na língua que falamos a música e a ternura desses povos ancestrais. Eles são nossos verdadeiros pais. A eles devemos, se outra coisa não podemos dar, pelo menos um grande respeito. Xingar alguém de tupiniquim é rejeitar sua própria identidade cultural, suas origens, isso sim, é se auto-depreciar como povo .

EXTRA, EXTRA, VEM AÍ O PARAÍSO I I

Nosso mundo virou um imenso reclame. Fomos transformados num interminável catálogo de sim e não, onde grassam todas as proibições possíveis de um lado, e de outro, uma permissividade jamais sonhada nem nos melhores dias de Pompéia.Mas dizer um não que se preze é ofício que exige, no mínimo, uma posgraduaçãozinha , mesmo tendo sido feita na Faculdade da margem esquerda do Amazonas, ou no novo intensivo noturno por correspondência, o INC, aprovado pelo MEC nas brechas da lei. Essas proibições caem como canivetes sobre nossas cabeças. Não dá pra abrir um jornal, ligar a tv,olhar uma revista sem lá encontrar o Dr. Entendido falando, desde a melhor maneira de cortar a unha do pé, até o jeito mais apropriado de tirar a casca da banana. Espetados de um lado e de outro, ora pelo que é correto, ora pelo que não, nossa vida vai-se transformando num verdadeiro corredor polonês. Temos informação em excesso. O mundo vem abaixo na voz do homem do jornal das oito, muito sangue escorre e já é rotina ver quantos acidentes mataram quantos. Dizer que notícia boa não vende é chover no molhado. O Mario Quintana servindo pra publicidade disfarçada. Muita gente faturando por conta do poetinha. Quem foram os escritores que venceram o concurso Mario Quintana? Não pensem em ver esse tipo de informação facilmente. Tem que garimpar. E, de repente, vejo-me desligando a tv freneticamente, jogando jornais novos no lixo, sentindo-me sufocada diante do micro. Seu enorme olho me trespassa sem piedade. Não sei se é o cansaço da madrugada, mas fico impotente diante dele. Sua voz em zzzzz contínuo revela a estrutura que informa e registra,sem sangue nem estremecimentos, e eu o odeio e invejo ao mesmo tempo. Esse microondas que aquece os pratos pré- prontos da culinária internacional da Net se posta a nossa disposição como um cão obediente,sem abanar o rabo,mas impávido na sua servilidade de máquina. Ele chegou pra ficar e está se encarregando de minar o bicho existente em cada criatura. Uma legítima caixa de Pandora sob o ponto de vista relações humanas. Sobreviveremos?Foi-se o tempo em que a gente podia ser indiferente. Qualquer movimento que se faça desde a hora em que botamos o pé fora da cama, está inserido no contexto. Uma vez de volta ao mundo real, despencamos do estado onírco para a engrenagem onde estamos devidamente numerados, fichados, neste batalhão de insanidade organizada. Bons tempos aqueles onde não havia esse bombardeio de isso é bom, isso dá câncer, dá celulite, retém líquido, longevidade, qualidade de vida ,calorias,campanhas contra e a favor, protestos...Me faz lembrar da frase de um amigo que gostava de brincar com as novidades. E era a década de 70: "Esse negócio de educação moderna é bobagem. Pai tem que dar é bóia e uma tunda de vez em quando e pronto." Tal afirmação remete ao ideal da simplicidade: o sol nascendo todos os dias, a gente trabalhando, alimentando-se, às vezes festejando, fazendo orações, consolando um amigo, comendo uma talhada de melancia, dormindo a sesta, até morrendo melhor na própria cama, com pessoas conhecidas te olhando, e no mais o barco segue que as águas se encarregam. Estamos sufocando em nosso próprio lixo, mas com muita classe, com muito detergente, muita estupidez travestida de cultura. Não há purpurina que baste para tanto exibicionismo estéril. Que até Deus se cansou desse povinho e foi curtir umas férias, quem sabe nas ilhas do Paraíso II, onde terá criado um novo casal, não, ele não faria isso. Bem, só Deus sabe... E cá pra nós, seria aquele furo de reportagem! O

O DINHEIRO NÃO TEM BANDEIRA

Existe circulando pela internet uma infinidade de piadas, caricaturas, críticas pesadas e outras manifestações contra o atual presidente da República. Acho que é bom que possamos nos expressar com liberdade, afinal isso é bem democrático, para usar a palavra meio gasta, mas que surge seguidamente nos debates.Entretanto, apresentar Lula como um excremento é fazer como o cachorro que ladra enquanto a caravana passa. Pode até funcionar para risadas,reforçar um sentimento anti alguma coisa, mas não vai ao essencial. Eu acho que deveríamos fazer charges mais abrangentes e ter outras atitudes, se quisermos passar uma mensagem realmente modificadora.Uma delas é votar. Especialmente votar contra o sistema que está bem representado por mais de um candidato. Nada de picolé de chuchu, devemos provar outro sabor, mesmo uma pimenta agressiva pode ser um bom voto de protesto contra o que todos reclamam. Pelo menos no primeiro turno. Depois, provavelmente entre a cruz e a caldeirinha, paciência, talvez seja mais prudente permanecer no inferno já conhecido. Particularmente, não alimento ilusões, nós não teremos um salvador da pátria. Pensar que sim, também faz parte do márquetin. Mas voltando às particularidades brasileiras, como surgiu esta história de que o nosso povo tem tanta raiva de pobreza? Primeiro mundo, ver e babar, é uma frase que se dizia por aqui quando há muitos anos passava um comercial do Martini Bianco, todos num iate vestidos de branco, voiles esvoaçantes, sorrisos ortodônticos, uma beleza. Fomos transformados em consumidores por manobras bem direcionadas, uma delas incidindo sobre o sistema educacional,além do empobrecimento no campo que levou ao inchaço das grandes cidades e ao processo de desaculturação progressiva. É uma piada triste mas lembrei de um argentino que morava há tempo em Porto Alegre e um dia falou: brasileiro tem é coca-cola nas veias. É no hemisfério sul que se concentra o grande curral consumidor do lixo que jogam sobre nós, compramos muito, assimilamos muito, trabalhamos muito para ouvir ainda, dito mesmo por compatriotas, que brasileiro é vagabundo. Vagabundos são os que nos exploram e trabalham 20 horas semanais.Vejamos, então, só uma ponta do iceberg. Sempre que se fala em espetáculos televisivos, especialmente novelas, diz-se que o povo não gosta de ver pobreza, que tem raiva de pobre, que gosta do luxo. É uma falácia travestida de verdade e que serve muito bem aos que puxam os cordões da marionte. Aí ficamos nos xingando,vejam só esse presidente, todo mundo roubando, vamos colocar lá em cima um homem formado, especialmente com pós graduação na Sorbonne, ou um industrial rico que não precisa roubar, essas baboseiras todas e pior, um que rouba mas faz e pasmem, elege-se mais de uma vez. E a emissora representante dos mais iguais continua colocando a isca apropriada em sua novela das nove, um mundo de ócio, dinheiro fácil, e pra variar temos agora uma classe "média" onde fora os criados, só duas pessoas trabalham (uma é médica)e suas casas são cinematográficas,a distribuição de jóias da falecida transcorre num clima de peguem essas coisinhas (ver e babar), uma cena bem comum na realidade brasileira, pois não? Então, os "duros" sonham com as uvas lá em cima, ficam esperançosos, quem sabe? Aí,a verdadeira classe média, mais mobilizada e pronta que seus irmãos menos favorecidos, faz o serviço sujo e pisa nos de baixo, não deixa eles crescerem em protestos, chama os movimentos dos sem nada de terrorismo, a grande e cada vez maior base da pirâmide. Pra garantir a posição na maratona, na vil esperança de alcançar mais riqueza ou simplesmente de manter privilégios,a classe média serve de capitão do mato, de feitor pro grande senhor da fazenda, que hoje não é um lugar, não é um país, é qualquer paraíso no planeta, onde o dinheiro não tem bandeira. (Acho que estou correndo risco porque o que eles mais detestam é um bom nacionalista, esses filhos da mãe!)E não pensem que essa gente de quem falei são os outros. Na atual conjuntura, nós que comemos três refeições por dia, estamos aí diante do micro, fazemos parte desse povo. E já faremos muito se tomarmos consciência desse fato, tentarmos divulgar a idéia para que no caso de chegar o nosso dia de debaixo da ponte, acampamento de lona, miserê legal, possamos ouvir algo melhor dos de cima do que" são uns vagabundos, tem que matar tudo, chamem a CIA (essa escapuliu). Eta mundo velho sem portera, que saudades da vida besta que o Drummond execrava em início de carreira. Dá pra resumir com uma frase de um personagem do Quino,cartunista que fez sucesso na década de setenta, provavelmente a Mafalda: "no se trata de de herir suscetibilidades, sino de matar-las." Só que agora os vilões se tornam invisíveis, não têm endereço, não baixam no terreiro, não usam fardas, esses são ainda piores.

DANÇAR BOLERO EM DÓ MENOR

Ele dançou como doido. Gastou a sola do sapato em passos ritmados e exatos. Pairava no ar aquele misto de perfumes, cigarro e mofo. Mas pra ele era o céu, aquele lugar barato de pessoas baratas. Pra Etevaldo que saíra há pouco da cadeia, aquela sala seria o próprio paraíso se não tivesse tanta cara de inferno. Já estava meio alto e sua parceira começava a se inquietar. Os passos aos poucos passavam de exímios pra entrecortados e desciam rápido pra incongruência das linhas. O oblíquo e o transverso, uma geometria desmesurada, onde o bico do sapato ia achar sem dó a canela da moça e os joelhos dele não conseguiam mais fazer o vaivém jeitoso. O braço em torno da cintura tão elegante, agora parecia mais um gancho tosco a prender uma boneca de pano, pois os pés dela começavam a se distanciar do chão e a mão na mão tinha virado um me seguro pra não cair.. Etevaldo sente um braço em torno do pescoço, que é isso cara, me larga, que que há rapá, e vai largando a dama enquanto tenta se virar e ver qual é o tamanho da encrenca. Ela, coitada , sai arrastando um pé que perdeu o sapato,enquanto tenta endireitar o corpo olhando meio de cima, aparentando calma, mas seu cabelo arrepiou prum lado e o vestido rasgou a costura no esforço.O segurança conduziu-o à porta e ele a se fazer de desentendido. Não pode abusar no salão ô cara, quem, eu, estava só dançando, isola!!! Finalmente ficou sozinho. Chegou à calçada balançando o corpo . A voz da cantora ondulava em tons menores, próprios de boleros soluçantes. Besa-me, besa-me mucho, como se fuera esta noche la ultima vez...Etevaldo ali, uma trouxa de gente com o terno desalinhado que o defunto era maior, ruminava idéias desencontradas, escorado na parede, até que foi escorregando e alcançou o chão de mau jeito. Puta merda, que porra é essa que tem aí? Os joelhos quase no queixo, não conseguia mover-se e uma dor aguda mais o contato com a mão lhe indicaram a presença de um caco de tijolo, sobra de uma reforma interminável. Foi obrigado a deitar-se de lado e apoiar as mãos no chão. Assim ergueu-se. Ao tentar dar um passo, aaaiii! e saiu mancando.Lá dentro, as poucas pessoas que haviam presenciado o fato, já nem lembravam mais, envolvidas com a dança e a música. A cantora, uma senhora gorda, vestido de cetim vermelho, mostrava mais do que devia suas carnes já bem amarrotadas. Etevaldo, um pouco mais lúcido, ficou espiando pelo vidro da porta, o único detalhe do prédio que aparentava uma certa elegância. A primeira reação foi de tristeza, a hora em que o álcool começa a queimar glicose e o estômago a dar sinal de vida mais a cabeça inflada sobre os ombros. Arrancou o paletó com raiva e puxou a camisa pelos botões, jogando tudo longe. Em seguida, irritado com o mal estar e caindo em si da sua deplorável condição, orgulho ferido, ferida velha que sangra a qualquer toque, respirou fundo e foi direto à porta.Agora os casais enchiam a pista naquela hora em que os arroubos cederam lugar ao cansaço e a uma certa melancolia. O piston escorria suave numa afinação perfeita. Então a dama de cetim crescia, se emocionava e lá vinha mais um bolero. Relô no marques las horas, torna essa noche perpetua, tu te iras para siempre, antes que amanesca otra...Aí ouviu-se um tremendo estouro e uma cena dantesca apresentou-se. A porta de vidro veio abaixo em mil cacos como uma avalanche e, do meio dela surgindo, com o torso nu, a triste figura do escorraçado. As pessoas ainda não refeitas do choque, ficaram paralisadas e ele, a passos largos,se foi em direção ao pequeno palco. Dona Odete, a cantora, ergueu a saia longa com as duas mãos e abandonou o coreto, pés afastados que nem pata,pra se equilibrar na escada. O alvoroço era geral. Mas a curiosidade ainda segurava a maioria do pessoal dentro da sala. Quando se deu o grand finale. Etevaldo arrancou o cabo com o microfone, colocou sobre a coxa e quebrou em dois pedaços, como se fora um graveto qualquer.Aí a debandada foi geral. E no meio daquela confusão, o dono da casa, pressentindo o prejuízo, se botou a berrar:- Meu Deus, mas como, será que não tem um homem neste bar? Aí,não sei de onde, apareceram dois. Foi o fim de uma noite e da liberdade também. Logo a viatura da polícia levava o desgostoso prum lugar que ele já conhecia muito bem e de onde sairia pra tornar a voltar, por muitas vezes ainda.
tania orsi vargas
Publicado no Recanto das Letras em 29/06/2006Código do texto: T184617

VIVA TAQUARA!

Foi uma grata surpresa constatar que minha humilde cidade foi citada várias vezes em uma crônica publicada neste Recanto das Letras. E saber que tal acontecimento se deve exclusivamente à minha participação nestas paragens, com meus despretensiosos trabalhos literários, deveria ser motivo de grande alegria.
E tudo por um acaso dos mais interessantes. Eu resolvi fazer um comentário sobre um fato que está na mídia há alguns dias. Mesmo eu não costumando assistir a noticiários de TV, fica impossível não ouvir a ladainha que se arrasta espichando de forma patética a histórai da única vítima retirada até agora, uma senhora idosa que passava pelo local. Haja defunto pra vender!!! Eu até acho mais honesto, mesmo que indecente,neste caso, o noticiário de um canal menos importante, onde ficam horas de plantão para mostrar os acidentes nesta grande metrópode paulista. - Mostra a mulher morta! grita o repórter para o câmera. - Aqui, filma aqui, olhem telespectadores, a mulher grávida dentro do carro vai ser retirada, ela está muito ferida, olhem!!
Infelizemente os noticiários vertem sangue e todo mundo sabe disso. Provavelmente não é por acaso que tal acontece. Tragédias agitam, assustam, deixam as pessas mais vulneráveis... mas não vou me estender nessas considrações. Eu falava da minha cidade. Realmente ela também faz parte do Brasil. Ainda que no extremo sul, longe do umbigo nacional, sem nenhum atrativo especial, nem imune a problemas sociais.
Eu sempre soube que nós gaúchos, por esta distância geográfica do centro do país e por outros acontecimentos no passado político brasileiro, bem como uma postura muito "bairrista" em relação a nossas coisas, sofremos certa discriminação, especialmente por parte de quem não gosta de posicionamentos digamos, incômodos. Mas o que eu não imaginava é que uma pessoa daqui de baixo como eu seria interpelada e admoestada , mesmo que de forma sinuosa, por ousar opinar sobre problemas que ocorrem na cidade de São Paulo neste instante ainda. O que eu não sabia é que precisava de licença especial para ousar dar palpites sobre grandes metrópoles, eu disse metrópoles, citei inclusive a cidade do México. Gostaria de lembrar que, além de possuirmos aqui no Rio Grande sérios problemas sociais como qualquer estado deste Brasil, também fazemos parte do território nacional, também somos brasileiros e tudo que acontece neste solo pátrio casualmente poderá despertar em nós gaúchos, sentimentos, reações, atitudes, enfim, qualquer posicionamento. E que ainda não estamos pedindo licença pra nenhuma pessoa que , sendo brasileira como nós, resolva decidir se podemos ou não opinar sobre determinado assunto. Isto sim, seria lamentável porque estaria trazendo à tona outra catástrofe que ameaça este país, que não a ecológica. Esta realmente preocupa.

A CIDADE É SEU PRÓPRIO ALGOZ

Horas e mais horas de filmagens, entrevistas, choro, parentes, o governador, o bispo...não, este ainda não apareceu, ainda é só para dar a conotação de exagero que representa mais esta história trágica de uma grande metrópole.Vendo o número de vítimas, pouco mais de cinco, fiquei a pensar no número estatístico de mortes diárias e muitas vezes anônimas nesta monstruosa capital. Pensei no porquê de tanto alarde sobre um fato que, se olharmos pelo número de mortos, torna-se minúsculo diante do acidente generalizado em que se constitui a própria existência de metrópoles gigantescas como esta. Vem-me à mente o motivo de sua existência. Todo mundo sabe que a população de São Paulo inchou com imigrações recentes em termos históricos, mas que se agigantou com a migração interna, resultado especialmente, do êxodo de nordestinos em busca do sul sob total desespero. Assim também aconteceu na cidade do México que é uma monstruosidade que abriga pessoas egressas dos campos miseráveis.Assim, criados estes monstros urbanos, com seus milhares de veículos circulando todos os dias, ninguém deveria ficar admirado que, de vez em quando, de tanto remexer e remexer para que esta gente se movimente melhor, algo viesse abaixo, porque me parece impossível que em tal barafunda de estruturas, em tal parafernália infernal, a terra não ceda de vez em quando, afinal, a Terra está a girar, as árvores a crescer, mas o homem com suas mãos está a destruir, a cimentar, a esburacar e a poluir o planeta há muito tempo. Temos que pagar o preço. Há descuidos, há desvios, há má intenção? Sim, existe tudo isto! Entretanto, convenhamos, esta cidade vista assim na reportagem, com vias sobrepostas e aquele trânsito caótico é de dar um nó na garganta. E agora os jornais exploram pra vender, pessoas podem lucrar com alguns minutos na telinha, a intimidade das famílias em sofrimento é exposta vergonhosamente na TV como espetáculo.E não demoram a aparecer os que aproveitam pra gritar por justiça, faltam só as passeatas com aqueles cartazes que surgem pateticamente diante do que não tem solução. Ou melhor, cuja solução exige atitudes de cidadania que o comodismo e o individualismo de muita gente que reclama não permitem assumir. Grita-se contra os governos, melodramas surgem em crônicas oportunistas, como se a tragédia desse povo não fosse assunto diário e corriqueiro. Como se hoje mesmo em São Paulo não vão morrer bem mais que cinco pessoas, em circunstâncias de violência, descaso, miséria e outros problemas, cuja cronicidade aponta para um futuro ainda pior. A IMPRENSA VENDE, OPRTUNISATAS FAZEM ALARDE, A CIDADE É SEU PRÓPRIO ALGOZ!!!
tania orsi vargas
Publicado no Recanto das Letras em 15/01/2007Código do texto: T347753

MEDIOCRIDADE ASSUMIDA

Amanhecer como todo o santo dia nestes últimos anos de minha vida, esquecer sempre a chaleira no fogo, perdida em uma leitura interessante, estar a mercê de minha intransigência e má vontade com aquilo que abomino, eis uma cilada diária que, oferecendo sempre o mesmo perigo, sendo já conhecidos seus malefícios, ainda assim, inadvertidamente, de forma masoquista quem sabe,me fas despencar no seu abismo sempre outra vez, tendo feito todos os bons propósitos na noite anterior. Estou a dar voltas e voltas pelas mesma trilhas, que de tão gastas já oferecem os sulcos das pisadas, bastando simplesmente colocar o pé nas marcas traiçoeiras. A noção de tempo decorrido se torna simplesmente impossível,estamos tontos e desamparados, estamos tristes, aborrecidos, e a morte é uma linha de chegada imaginária e cruel, entretanto a única certeza enquanto respiramos.O telefone toca, as cartas chegam, o sol aparece e desaparece, e março chega e dezembro vem e a rio se enche com as chuvas e baixa nos tempos de seca. O jornal na tv conta todos os dias a mesma história com novas e velhas personagens, a praça se enche na animação de um evento e amanhece vazia numa ressaca de brisa leve, algum papelziguezagueando semr rumo. Minhas mãos estão estranhas com a pele ressecada pelo tempo e parecem me olhar e pedir socorro. E eu não sei o que fazer com elas nesta manhã de céu tão azul e uma inutilidade desconcertante. O que valeria a pena ainda neste fim de festa? O que seria preciso pra preencer os dias e suportar as noites?Queremos a segurança de uma paisagem familiar que ampare nossa perplexidade. Ao diabo com a segurança, ao diabo com a cordialidade bestializante. Não quero esse medo que me afasta dos perigos e me paralisa os gestos. Ser generoso, cordato, deixa nossa alma em frangalhos de bondade. E são tão doces os laços firmes da tirania familiar. E são ao mesmo tempo tão cruéis na sua bondade catequisadora! Nossas melhores crenças não resistirão aos vislumbres da velhice. E a grandeza das almas nobres é um verniz que não sobreviverá a dois invernos de guerra e fome. Resta a verde e patética resignação. E as lembranças de mentiras possíveis. Resta o tempo pra gastar em passeios por trilhas circulares, resta a luz do dia, a sombra da noite, a cama, a dor, a fome, o tédio.

MEDIOCRIDADE ASSUMIDA

Amanhecer como todo o santo dia nestes últimos anos de minha vida, esquecer sempre a chaleira no fogo, perdida em uma leitura interessante, estar a mercê de minha intransigência e má vontade com aquilo que abomino, eis uma cilada diária que, oferecendo sempre o mesmo perigo, sendo já conhecidos seus malefícios, ainda assim, inadvertidamente, de forma masoquista quem sabe,me fas despencar no seu abismo sempre outra vez, tendo feito todos os bons propósitos na noite anterior. Estou a dar voltas e voltas pelas mesma trilhas, que de tão gastas já oferecem os sulcos das pisadas, bastando simplesmente colocar o pé nas marcas traiçoeiras. A noção de tempo decorrido se torna simplesmente impossível,estamos tontos e desamparados, estamos tristes, aborrecidos, e a morte é uma linha de chegada imaginária e cruel, entretanto a única certeza enquanto respiramos.O telefone toca, as cartas chegam, o sol aparece e desaparece, e março chega e dezembro vem e a rio se enche com as chuvas e baixa nos tempos de seca. O jornal na tv conta todos os dias a mesma história com novas e velhas personagens, a praça se enche na animação de um evento e amanhece vazia numa ressaca de brisa leve, algum papelziguezagueando semr rumo. Minhas mãos estão estranhas com a pele ressecada pelo tempo e parecem me olhar e pedir socorro. E eu não sei o que fazer com elas nesta manhã de céu tão azul e uma inutilidade desconcertante. O que valeria a pena ainda neste fim de festa? O que seria preciso pra preencer os dias e suportar as noites?Queremos a segurança de uma paisagem familiar que ampare nossa perplexidade. Ao diabo com a segurança, ao diabo com a cordialidade bestializante. Não quero esse medo que me afasta dos perigos e me paralisa os gestos. Ser generoso, cordato, deixa nossa alma em frangalhos de bondade. E são tão doces os laços firmes da tirania familiar. E são ao mesmo tempo tão cruéis na sua bondade catequisadora! Nossas melhores crenças não resistirão aos vislumbres da velhice. E a grandeza das almas nobres é um verniz que não sobreviverá a dois invernos de guerra e fome. Resta a verde e patética resignação. E as lembranças de mentiras possíveis. Resta o tempo pra gastar em passeios por trilhas circulares, resta a luz do dia, a sombra da noite, a cama, a dor, a fome, o tédio.

AS NOSSAS ASAS DE ANJO

Nossa vida transcorre em uma linha horizontal, com vibrações ocasionais que variam de cor e intensidade e pra se manifestarem dependem de certas condições que nada têm a ver com eventos de oredm material. Elas são de outra essência e de outra natureza. Nesses momentos, abre-se uma linha de luz que nos conecta diretamente com os anjos. E quanto mais nos demorarmos a desfrutar tais momentos, mais vezes e de forma mais intensa teremos oportunidade de vivenciá-los.Nesta época de Natal, as pessoas se tornam mais vulneráveis e suscetíveis a bons sentimentos, o que pode facilitar a conexão. Mas o maior inimigo desta graça revelada, reside nos obstáculos construídos pela necessidade de qualificar as pessoas por aparência, posição social e tdos os entraves que fomos criando para uma grande segregação esterilizante que divide as pessoas por critérios absurdamente maldosos.Comprei dois pacotes de milho verde de uma moça que bateu à minha porta. Ela provavelmente estava trabalhando para algum pequeno produtor e sua aparência contava das dificuldades que teria passado na vida. Entretanto ela estava ali, tranquila, quase feliz, e ao sair me desejou feliz natal. E apesar da fórmula tão velha e gasta, aquele desejo expresso em uma situação tão insuitada me tocou profundamente. Ela não sorriu, a voz não teve modulações especiais, mas houve uma secreta vibração que nos envolveu naqueles poucos instantes em que eu lhe entregava o dinheiro , ela falava, nossos olhares se cruzavam em sintonia e aí ela alcançava o portão para seguir sua vida. Ainda ensaiei um esboço de compaixão ou outro sentimento que pode surgir em situações em que ficamos diante de pessoas mais humildes, mas ele não vingou. Algo muito acima dessas preocupações materiais havia acontecido.A moça se agigantara como um ser único que me desejou feliz natal e sua sinceridade, captada por um sensor especial que vamos desenvolvendo com a experiência e a observação, fez resplandecer minha alma, tal qual fala a oração sobre a presença iluminada de Cristo.Nosso encontro não teria sido possível se não estivéssems aninhadas na mesma frequência . Estando eu na defensiva, ou tendo galgado maquinalmente alguns degraus acima por preconceito ou má vontade e a mágica não teria se consumado. Essa que permite encontros em nossa vida, capazes de marcar profundamente e provar que a verdadeira natureza não é compatível com qualquer lei ou regulamento ou posturas arrogantes. Uma mágica divina que precisa ser encorajada a se manifestar, não sendo compatível com qualquer apego ou estéril exercício de materialismo.Assim como diante da morte ou de situações limite, onde a exacerbação de nossos sentimentos em dor, perplexidade, faz reformular antigas posturas, o Natal, mesmo como todo o consumismo, ainda mexe com nossas lembranças mais arraigadas, subconscientes. E vai deixando pistas para contatos numa vertical fulgurante, em escapadelas fantásticas, onde o bicho deixando sua cápsula grosseira, eleva-se como queubim alado. ASSIM COMO NAVEGAR, VOAR É PRECISO!! FAÇAMOS NOSSAS VIAGENS EM ESPLENDOR, ALEGRIA E SOLIDARIEDADE!!
tania orsi vargas
Publicado no Recanto das Letras em 20/12/2006

O VELHO E BOM SEXO

O erotismo existe desde Adão e Eva e, sendo o sexo uma força tão poderosa, é de se esperar que durante toda a trajetória da humanidade ele fosse provocar os mais variados conflitos e escaramuças. E a literatura não poderia deixar de conter esse tema nas mais variadas formas. Por outro lado, a repressão sexual foi sempre instrumento de dominação, pois a liberdade no sexo leva a um comportamento menos controlável pelo sistema, uma vez que torna o indivíduo menos sujeito à qualquer doutrinação castradora. A presença massiva de pornografia em nossos dias vem comprovar que estamos longe de uma liberdade sexual. O que existe é uma grande libertinagem, uma promiscuidade explorada como ótimo negócio, inclusive com a famigerada pedofilia. A repressão sexual nunca foi tão grande, do contrário o sexo não seria a mercadoria tão cobiçada e geradora de fortunas. Se ele fosse encarado naturalmente, ninguém pensaria em aparelhar-se entrando em sex shops ou acionando canais privé na internet. Trepar seria tão simples como saborear uma fruta. E uma bunda teria dois hemisférios e seria simplesmente uma bunda, não serviria pra vender cerveja, nem pra anunciar automóveis. Existe uma grande diferença entre literatura com temas ousados, onde o sexo é retratado por escritores competentes e de forma literária, como é o caso de Henry Miller, por exemplo, e textos sensacionalistas e comerciais, produzidos com o único intuito de ganhar dinheiro. Tais escritores têm uma postura e uma história de publicações que ratificam sua competência e intenções. Acontece o mesmo com a pintura abstrata. Um pintor que já se consagrou com telas que comprovem seu talento pode fazer seu abstrato sem passar por embusteiro. Porque para um público sem prévios esclarecimentos, no campo do abstracionismo da pintura, todos os gatos parecerão pardos na penumbra do traço e do domínio cromático. Assim também, para um leitor menos crítico e informado, onde o sexo for retratado de forma mais crua ele verá a licenciosidade. A pornografia é um ótimo negócio e se apresenta nas formas mais diversas, além do texto escrito. Ela se alimenta da solidão e carência das pessoas. Também das suas condutas doentias, resultado de uma moral castradora. Não seria mais simples encontrar prazer como bichos que somos? Acontece que o bicho que "somos" está enclausurado e preso a tantos modismos, necessidades artificiais criadas por quem quer nos fazer massa de manobra, consumidores das coisas produzidas, está tão atrapalhado com a vitrine de possibilidades, com a "imagem" de si próprio que os meios de comunicação projetam nas telas, que já não sabe direito quem é verdadeiramente, se o velho animal de carne e osso, ou aquele no telão, com dentes branqueados demais, com as cuecas ou calcinhas marca tal, com a bolsa do Fulano Sódondoca, o carro mais potente (vejam a relação com a libido) que pega todas, o supercelular pra dizer abobrinhas e fazer figura, enfim com tudo que pesa sobre sua simples cabeça de animal mortal e limitado. Perdido diante de um mundo que vê na TV, nos jornais e nas revistas e que está bem longe de corresponder à verdade, o bicho ser humano perde a perspectiva que lhe daria uma vida de paz e bom convívio com seu corpo. Vemos então meninos usando Viagra, meninas esqueléticas, senhoras sessentonas casando de noiva com rapazes quase netos, tudo em nome do prazer, que também virou mercadoria de consumo rápido. Isto é evolução, dizem os ufanistas da superficialidade. E agora temos uma diferença interessante em relação aos primitivos homens de lata. Eles eram feitos pra imitar o homem, realizar tarefas que pra nós são até simples. Mas os tempos mudaram. Hoje somos nós que tentamos imitar as máquinas. Estamos tentando ser o mais mecânicos possível. Nossos relacionamentos carecem de sangue quente. Nossa humanidade é vista como coisa obsoleta . Nestes anos de mudanças e avanços da técnica, progredimos pouco como humanóides. Ainda temos o velho falso moralismo, moral de conveniência, dois pesos e duas medidas, barroca por seu antagonismo. Neste contexto hipócrita, pode-se ver o que já foi mencionado, ou seja, que a repressão sexual é muito grande, o que provocará atitudes ambíguas, em que as pessoas se esforçam por manter uma imagem aprovada pela sociedade, deixando o sexo para o anonimato dos motéis. E como toda mercadoria estigmatizada, torna-se artigo de altos negócios, tem um convívio estreito com a marginalidade e faz parceria com a exploração (veja-se o turismo sexual e o abuso de crianças) e o crime. Neste contexto, o velho e bom sexo ainda permanece na clandestinidade. Talvez fique aí pra sempre, enquanto nossas mutações nos encaminham para um futuro imprevisível.@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@Texto publicado na edição 64 do Clube dos Cronistas CotovelaresE mais:O velho e bom sexo edição #64As Três Marias edição #63Bolívia e Venezuela, uma nova Guerra do Paraguai à vista? edição #62Espirrando os estorvos edição #61Eles não se deixam libertar facilmente edição #59O dinheiro não tem bandeira edição #58

NARCISO SEM ESPELHO

Há pessoas que já nascem brilhando. Pelo menos na óptica de suas mães e da expectativa da família. "Vejam como é lindo!", "Será ainda mais brilhante que seu pai e seu avô", são frases que se tornam naturalmente presentes a partir de então. A pequena criatura, mesmo antes de aprender a falar, usando fraldas como todo bebê e produzindo aqueles subprodutos da nossa humanidade de bichos, já está fadada ao sucesso. Em sua reduzida compreensão do mundo dos adultos, brinca com a xupeta como todo e qualquer bebê e não passa de um bichinho indefeso e sujeito a irracionalidade da família. Seu destino está selado.Assim ele crescerá rodeado de aprovações a sua pessoa,uma imagem perfeita erguendo-se nos sorrisos e louvores do mundo exterior. Sendo que o exterior então, passa a ser ele mesmo, avistado num pedestal e assim introjetado novamente como única realidade verdadeira onde quer que vá. Qualquer um de nós já cruzou com espécimes desta natureza, seja como colega de escola, de trabalho ou mesmo em relações familiares. Eles se tornam tão intocáveis que chegará o momento em que não permitirão sequer a presença de algo que não funcione como espelho e que não lhes traga a confirmação da sua pretensa superioridade. Alcançada uma situação insustentável, deve-se temer por nossa integridade e evitar cruzar com esses inconformados raios laser.Entretanto, mesmo rejeitando os vidros onde o fenômeno da reflexão luminosa não logra produzir-se, nosso Narciso pós moderno anseia pelo dia em que tal forma embrutecida e forjadora de conceitos falsos sofrerá uma mutação a seu favor, e pra isso não mede esforços em tentar imiscuir-se em domínios adversos, sempre contando com uma reviravolta favorável. Todavia, em sua ansiedade poderá dirigir seu foco com mais energia que o bom senso permite e diz-se no estudo da óptica geométrica que um foco de luz cuja trajetória é interrompida fará deste ponto o caminho inverso em direção ao ponto original. E talvez alguma lei da física ou das relações humanas diga que um objeto lançado contra um alvo complacente, tornará a voltar em direção ao ponto de partida com força igual ou superior à que foi empregada pelo arremessador. Neste momento, o bebê-adulto sofrerá muito, não vendo seu brilhantismo confirmado em lagos turvos e indiferentes a sua grandeza. E, quanto mais ele tentar limpar as superfícies refratárias com palavras duras e movimentos tresloucados, mais turvas e esquerdas ficarão tais estruturas. Pois elas , por sua natureza, tem na aparência desagradável sua defesa contra a arrogância dessas luzes produzidas pela energia fátua da vaidade humana. Com o passar do tempo e o desgaste de um facho produzido com energia não renovável, os espelhos , mesmo os mais bem elaborados puxadores de saco e afins, começarão a ter dificuldades de cumprir seu papel mecânico. Já dizia aquele velho samba com propriedade:" Narciso rejeita tudo que não é espelho". E o interessante é quando dois desses se cruzam, como se postula no conceito de independência dos raios de luz: "...um não interfere na trajetória do outro, cada um se comportando como se o outro não existisse." Pois não é que a física imita os humanos?Vai faltar espelho sim, neste mundo onde não há purpurina que baste pra festejar mediocridades. Seja com bistrô, o tal bistronês, com botão francês ou simplesmente colado. Seja de raro cristal ou de reles vidro, em paredes palacianas ou pendurado em prego num barraco sujo. Porque nada fica parado. A evolução, como simples substantivo comum, pode significar nada mais que a transformação constante, pois a vida tem seus ciclos. Os adjetivos, esses sim, ficam por conta da vaidade humana.

A TRIGÉSIMA PRIMEIRA CRÔNICA

"Quero um CONTATO DIRETO com a escritora, poderia me fornecer seu endereço eletrônico?" Esta mensagem chega ao site Joelhares e, por segurança e discrição, repassam para a interessada."Contato direto, desejo um contato direto, que coisa mais... sem propósito", pensa em voz alta Helena. "Que coisa, mesmo!" Lá estão nome de homem, telefone e celular, parecendo letras de um cartão impresso. Aí, o download, fazer download? Um letreiro azul e amarelo, com uma espécie de forma alada sobre as palavras AUTO SERVICE. "Mas que coisa é isso", pensa Helena, já se sentindo um pouco incomodada. "Tão querendo me vender produtos para automóvel, que coisa mesmo, e eu nem tenho carro. Não me interesso por nada que diga respeito a eles. Desde que andem, tenham freio e buzina, o resto ignoro. Mas quem seria capaz de mandar propaganda prum site de literatura e pedir contato direto com o escritor? Tem cada coisa nessa internet, mas pera aí , vou é ligar pro 102 e descobrir se esse telefone é dessa pessoa mesmo." -Alô, gostaria de saber quem é o proprietário do telefone 3245689... é de São Paulo?, ahm, tenho que ligar pra outro número... tá, obrigada.Ligar pra outro, eu sempre achei que o 102 era a fonte inesgotável de todos os números de telefone. Ligar pro 104... alô, quero saber sobre o número, ah, tem que digitar informações, tá... obrigada... quer saber? vou é ligar pro tal contato misterioso mesmo. Helena vai copiar o número e por sua mente passa aquela reflexão irrefreável do Millor, uma enorme conta telefônica, mas já tá discando e em horário comercial, nove da manhã. - Auto Service, bom dia - fala uma vozinha de moça.Por um segundo pensa em parar, já sabe que a coisa existe, o número também. Mas a curiosidade se aguça.- Por acaso tem um senhor aí de nome Luís Venturini...?- Vou passar, aguarde um instante...- ...?- Alô! - uma voz bem grave e meio rouca surge do nada e Helena fica suspensa como se estivesse diante do padre nas confissões de sua longínqua meninice. Uma voz que parecia vir do além, saindo daquela caixa escura, com cheiro indefinível e que a deixava apavorada. Apesar disso, logo a conversa fluiu. - Mas que gentileza a senhora ligar pra mim... eu pedi seu endereço pro site Poetas Alados, é este...- O meu site é Joelhares, senhor. - Tá , este também visitei, ah, este é o seu, eu li muitos textos, mas tive que pedir seu endereço porque lá não tinha, outros sites têm.- É, mas este não.- E a senhora já está pagando uma ligação cara, por favor, diga seu número que eu ligo daqui.Helena sentiu um alívio, nem lembrava mais do problema do preço da chamada. E assim virou a conversa de lá pra cá. O tal senhor então falou de suas pretensões em escrever, que a família não sabia disso, parece que não o apoiava, ou ele tinha dúvidas quanto ao modo como reagiriam, Helena não entendeu direito. Então outra reflexão irrefreável lhe veio à mente. Sempre que os homens querem conquistar uma mulher, vêm com as queixas sobre a família, que não os compreende, coisa e tal. É, mas aquele papo estava longe de ser uma cantada. E no Joelhares não havia nem foto. É, ele queria mesmo era conquistar uma professora. "Que coisa mais estranha," insistia a vozinha interior inconformada. Seguiu a conversa e Luís perguntou se ela era gaúcha:- Natural do Rio Grande?Helena confirmou.- Ah, a senhora sabe, o estado onde eu queria morar é o Rio Grande do Sul. Gosto muito mesmo.Aquilo pareceu estranho, seria verdade ou era só uma forma de impressionar bem? Mas, afinal, que necessidade ele tinha de ser tão agradável? A conversa prosseguiu com uns atropelos por conta da ansiedade e uma certa insegurança de beira de precipício. Ele seguia dizendo:- Eu leio muito, gosto de ler, eu já tinha lido uns trinta textos, quando encontrei o seu. E escolhi a senhora, porque achei que escreve muito bem, com muita correção, com desenvoltura, gostei mesmo, muito!Helena já começava a se animar, afinal não é todo dia que aparece um leitor tão entusiasmado. Aí disse que enviaria mensagem, que ele podia esperar. E assim encerrou-se a conversa.A mensagem dela foi curta e imediata. Poucos minutos depois, volta a resposta que já devia estar pronta, porque o tal leitor colocava em uns quatro itens bem desenvolvidos os motivos por que escolhera, após trinta textos, aquele que considerava como parâmetro para alguém que queria ser um escritor pra valer. Ser a escolhida pareceu de repente a ela tão absurdo como um anjo descer em uma nuvem e comunicar que o céu existe mesmo, bem como nas histórias de criança, com aquela chatice toda de tocar harpa e viver sempre feliz. Já haviam passado alguns dias do ocorrido, ela ainda não tinha tido coragem de ler a mensagem e os dois textos em anexo. Cada vez que pensava no assunto, tinha logo uma vontade irresistível de desligar o computador e nunca mais voltar a entrar, como se uma intuição lhe soprasse que estava seguindo em direção perigosa. Mas ninguém resiste a um fã dessa envergadura, e afinal, era só um contato virtual. Então, no quinto dia, Helena, finalmente, por sentir-se na obrigação de retribuir a gentileza vinda do seu fã, dirigiu-se resoluta ao sacrifício. Diante do computador, foi direto pra caixa de correspondência. Teve que descer várias linhas até encontrar o email de Luís. Foi ler então a sua mensagem finalmente... No dia em que a recebeu, ficara tão zonza com aquela coisa de falar ao telefone com seu leitor, que nenhum ânimo ou capacidade de absorver qualquer coisa lhe restara. Agora, lia com toda a calma. E a mensagem era tão absurda e sinceramente elogiosa com a sua pessoa que ela chegou a se sentir encabulada.. Além dos quatro motivos muito bem delineados, havia uma mensagem final que paralisaria qualquer escriba dos mais calejados. Tentou abrir os anexos e diante de uma pequena dificuldade teve a idéia. "Vou primeiro ver a atualização do site Poetas Alados". Uma pausa pra respirar. Não estava sendo fácil aquela notoriedade repentina e sufocante. Ao abrir a página inicial, clicou em "nesta edição" e descobriu estupefata que seu candidato a aluno já tinha sido aprovado e figurava entre os autores novos naquela atualização. Ficou alguns instantes completamente perplexa. Mas como? Como é isso??? Sem mover-se, ficou ali prostrada por uma meia hora para encontrar novamente o rumo da sua história. Aí começou finalmente a escrever a tal mensagem, enquanto assimilava com lentidão o que os fatos estavam reservando. Quando pensava ter chegado ao fim, eis que uma nova e arrasadora circunstância traçava um atalho nesta trama real. Deixou o homem de um lado e o encontrou pelo outro. O fã que conquistara, que seria "seu leitor para sempre", tornou-se, de uma hora pra outra, um escritor prontinho e seu nome estava lá onde o de Helena ainda não conseguira figurar.- Mas isso é muito doido mesmoooo! ela quase gritou, pra diminuir um pouco a sobrecarga acumulada.Começou assim, sem nenhuma pressa e qualquer entusiasmo, a digitar aquilo que enviou no dia 20 de novembro de 2006.Poucos dias depois, ele mandou uma pequena mensagem de conversa mole, segundo suas próprias palavras. Tinha encontrado a foto dela num outro site, e comentou, para o mal estar da escritora, que não esperava ser ela uma senhora bonita, com a expressão feliz e jeito jovial. Que tinha imaginado uma pessoa de gola rulê e óculos e mais uns bla bla bla que a irritaram pela gratuidade e falta de coerência com tudo que houvera antes. Achou melhor ignorar e, a partir daí, seu "eterno fã" tomou o mais completo chá de sumiço. E agora ela é mais uma das milhares de pessoas nesta rede de interloucos que, após ter sido lançada às alturas por uma pessoa totalmente empolgada, vê-se, de um momento para outro, no mais completo abandono, como se a pessoa que caiu de pára-quedas em sua vida fosse resultado de uma alucinação produzida pelo excessivo tempo dedicado a navegar, que ele parecia mesmo um navegador, mas interplanetário, que entrou na sua nave sumindo em eclipse total... Mas surge um incômodo crescente, após pensar com mais calma. Aquela primeira dúvida sobre homens que dizem não ser compreendidos pela família voltou a sinalizar novamente. Entretanto, ainda bem que os emails são concretos, o telefone existe, é uma pessoa de verdade mesmo. E como muitas pessoas de verdade na net, sentindo-se na liberdade de não cumprir nem as mais elementares regras de boas maneiras e convivência civilizada, que dirá outras que indiquem respeito pelas pessoas de quem invadem a privacidade, além de alguma coerência. Aí já é querer demais. Pois o nosso herói à moda antiga, cheio de palavras amáveis e uma enxurrada de elogios esparramados em mensagens no capricho, não deu sequer uma abanadinha de despedida com o clássico lencinho branco, um tênue mas expressivo fecho para a história de amor literário que se esmerou tanto em começar a escrever. Descompromisso instituído, com raríssimas exceções, é verdade, são esses contatos virtuais. Eles exigem do internauta uma flexibilidade acrobática para executar os movimentos de um verdadeiro bambolê de interações que não será alcançada sem antes passar por muitos momentos de total dureza nos movimentos de cintura, sem falar no risco de fraturas irremediáveis em espíritos mais sensíveis.Se ele não quiser abanar com o lencinho, podia pelo menos dar uma abanadinha com o rabinho! Não seria tão elegante, é verdade, mas quem quer saber disso a essas alturas? Helena aguarda seu contato direto e ele sabe que lhe deve isto.

PASSADO E FUTURO, UM ETERNO PRESENTE

O relógio bóia sobre a eternidade como inútil e desconectado objeto, sem raízes no tempo, os ponteiros girando à toa. Em nosso pulso, nas paredes, nas torres, nas gavetas, até dentro das malas, seus ponteiros estão girando sempre sobre o mesmo palco,mostrando as mesmas horas de incontáveis dias que são o mesmo tempo, sobre o qual desenham marcas imaginárias de deslocamento.Temos a ilusão de que podemos controlá-lo e evitar sua passagem, e ele passa? Um passo após o outro, movimento, ilusão de tempo decorrido. Tuas mãos estão pra sempre nas minhas, o trem continua partindo em 1972, minha mãe continua sorrindo e dizendo que meu filho é lindo em 1977, meu pai continua dizendo que eu pareço uma boneca, no dia de meu casamento, o rosto do jovem que morreu continua gelado e tristemente pálido, as primaveras continuam lindas naquele dia de chuva dos meus dezessete anos. Nada começou e nada terminou. Um eterno presente é nossa vida. Um eterno onde tudo resiste até o derradeiro momento de partirmos sem destino conhecido. Estamos amarrados uns aos outros, massa única. Nosso universo é um só compacto de existências entrelaçadas. Uma grande vibração, o primitivo e continuado som que une a tudo,sopra mensagens subterrâneas a todas as almas. Como num carrossel seguimos girando nesta roda de Sansarra.Segundo os budistas, estamos presos à roda como escravos de uma senhora implacável. Vivemos vidas depois de vidas, passando por sucessivas encarnações e só nos livraremos dela se conseguirmos transcender, chegar a uma iluminação que nos permita ascender a outras dimensões. Já meu avô, baseado nas aulas de catecismo que tivera quando garoto, tinha uma explicação mais simples que ele gostava de encenar para nós, alterando a voz na hora da fala de Jesus. " No dia do juízo fina Jesus vai vir pra terra pra ressuscitar os mortos. Aí ele vai chegar perto da minha sepultura e dizer, Hugo, levanta. E eu vou sair caminhando de corpo e alma e encontrar meus parentes e amigos. Aí vou pro céu." E pronto. Eu achava aquilo meio simples, Jesus aqui na terra chamando meu avô assim, do nada. Pois é. Mas nesse negócio de morte, mesmo os mais ateus , na hora do perigo apelam para algum socorro, nem que seja um pai de santo , valha-me alguma coisa, me ajuda Deus dos ateus.Um grande e ilusório Maya e a caverna onde estamos presos e só vemos a sombra da realidade projetada nas paredes, segundo o Mito da Caverna de Platão, são formas de ver o mundo semelhantes, por pessoas de momentos e lugares distintos. O cientista Hawkins, dizendo que tempo e espaço são a mesma coisa, num acessível livrinho,dá uns dez nós na minha cabeça, com isso que ele escreveu para leigos. Racionalmente até consegui assimilar que ambos, espaço e tempo, são como que os dois lados da mesma moeda.Assim, quando damos dez passos, esse deslocamento faz o movimento que nos dá a ilusão de tempo decorrido. Na verdade é uma ilusão. Quando vi, pelo Google Earth o planeta Terra dividido em duas partes, uma com a luz do sol e a outra sem ela, umas cidades anoitecendo e outras amanhecendo, tive uma sensação esquisita como se me faltasse o chão. Isso me revelou que dia e noite também fazem parte do ilusório que nos faz ter a impressão de que o tempo passa.Assim envelhecemos, presos a essa metáfora de existência, a uma realidade como uma alucinação coletiva, marcando nos calendários nossas referências temporais, gastando nossa visão de tanto consultar relógios, de tanto procurar nos livros aquilo que eles não podem nos dar, porque a verdadeira sabedoria reside em nós mesmos, no nosso eterno presente de todos os tempos, basta ouvir uma voz interior que teimamos em não escutar.

O SEGUNDO GUARDA-ROUPA

O SEGUNDO GUARDA-ROUPA
Não consegui ir com meu filho ao aeroporto. Olhar ele entrando por aquele corredor esquisito e depois sabê-lo tragado por aquele monstro de ronco ensurdecedor que o levará para muito longe, não tive coragem. Despedi-me dele aqui mesmo, num cenário mais corriqueiro, onde é possível enganar as emoções, imaginar que é só um pequeno passeio, ou uma ida ao trabalho, ou qualquer vaivém das nossas rotinas. Faz pouco que ele voltou a morar em casa. Estava forapor seis anos, que incluíram período de transição,onde seu quarto permaneceu intacto e a definitiva partida simbolizada no ato de retirar o que ainda restava no seu magro guarda-roupa. E eu derramei muitas lágrimas apagando os últimos vestígios de um período de vida que estva definitivamente encerrado. Então começou outra gestação. Estava voltando pra casa. Mas logo descobri que aquele que tinha ido não era o mesmo que entrava de novo em nossa vida. Tive que providenciar um novo ventre para gestar aquela pessoa que não cabia mais no antigo. Tive que aprender a desconstruir aquela separação para podermos nos encaixar novamente numa nova convivência. E como consequência lógica, um novo quarto teve que ser providenciado. E lá veio o segundo guarda-roupa.Agora, à noite, senti o silêncio de sua ausência. Voltamos a morar juntos outra vez. Agora sei que ele já é nosso de novo. Pelo menos até que um novo guarda-roupa se faça necessário.

HISTÓRIAS DO TEMPO DA DITADURA

TAMBÉM GOSTEI MUITO DA FASE ROMÂNTICA DO GENERAL". Esta frase está passeando em minha mente há vários dias com uma insitência quase insuportável, algo assim como um bordão que sobreviveu impávido após ter sido ouvido por meses, e depois de ter sumido pra sempre, sem ser notado, um belo dia retorna com muita força e empenho. Parece ter vida própria e está a exigir alguma providência
.
Antes dele foram as Bachianas de Villa Lobos, aquela música intrigante e sinuosa, linda, atingindo a gente nas fragilidades mais recônditas. Eu então cantava, tentando exorcisar com o canto, como se entoasse um mantra, algum demônio que estaria sem dúvida surgindo das profundezas e exigindo muita beleza e estremecimentos para transformar-se em anjo batalhador. Mas aí veio a tal frase, foi ficando, machucando, exortando para uma ação que não me sinto mais em condições de executar.
Foi nos idos dos anos setenta, quando a ditadura já baixava à condição de terminalidade, que li numa revista essa frase, dita pelo nosso Chico Buarque de Hollanda em resposta ao que dissera o Presidente Figueiredo sobre ter apreciado muito a fase romântica do compositor: "também apreciei muito a fase romântica do general."
Daqueles anos todos que pareciam não ter fim, ficaram lembranças esparsas de fatos que sobrevivem como retalhos soltos ao vento.
Uma carta vinda de Angola, aberta, com um carimbo esquisito que denunciava inspeção. A sensação de ter sido invadida e foi o fim de uma correspondência que eu iniciara com um português na mais santa inocência.
Um torneio entre professores do Estado, onde as autoridades estavam presentes, secretário de educação e outros,nuita pompa e uma interferência nos serviços de alto-falantes por conta do marido de uma professora, que estava a falar no radio amador em seu carro. No meio de um discurso, surge aquela voz parecendo vir do além: E O FEIJÃO? SUBIU DE NOVO! Fosse hoje, a platéia provavelmente cairia na risada, mas naquele tempo não. Todos, mesmo não tendo acesso ao pior que ocorria, sabiam que ali não havia lugar pra brincadeira. Foi um silêncio de túmulo e uma agitação visível naquele palco das autoridades. Felizmente tudo se resolveu.
Eu estava auxiliando na biblioteca da escola e tinha um livro em casa que contava a viagem de um jornalista à Cuba. Já estavamos nos tempos de abertura e eu achei que não teria problema em fazer uma doação pro nosso colégio. Quando contei o fato pro meu marido, ele ficou verde, depois branco e me disse: - Vai lá agora mesmo e tira este registro da biblioteca e consome com este livro!
Na Faculdade onde estudava, pessoal do interior, menos acesso a alguma infrmação mais esclarecedra,via as fotos daquels jovens como eu , naqueles cartazes em preto e branco, como assassinos procurados, escrito embaixo :TERRORISTAS Tenho a foto do mural em minha memória com eles. Todo o resto que por ali passava não ficou registrado, mas aqueles cartazes sim, como uma coisa mal resolvida que eu, como muitos outros, pela ausência total de informações, não conseguia encaixar no meu mundo então.
Minha tia que morava em Porto Alegre e trabalhava no setor público, nos alertava de "perigos", mas tinha tanto cuidado em não esclarecer com palavras mais denunciadoras que ficávamos sem saber direito o alcance deste risco. Em todo caso sabíamos que ela tinha rãzão, a gente respirava este controle, algumas coisas concretas haviam respingado em nossa cidade do interior, como a prisão de um rapaz que era do "clube dos onze" uma espécie de gurpos de guerrilha surgidos por seguidores de Leonel Brizola. E esta mesma tia me disse, quando vim tabalhar em Taquara num colégio que estava a ser inaugurado, fazendo parte de um progama de implantação da Reforma do Ensino, por convênio do MEC com o governo norteamericano: Tânia, cuidado com o Diretor do colégio, é ele quem entrega.
Muito dinheiro gasto nesta vitrine que era para empurrar a tal reforma como coisa moderna e de melhoria do ensino.
Hoje está tudo tão longe, escondido na História do Brasil, dentro de livros e velhos jornais. Mas a memória de pessoas como eu e mais velhas ainda guarda tais acontecimetos.
Entretanto a pretensa liberdade que conquistamos é também um engodo. Experimente você ter idéias originais, atitudes mais despojadas e veja o que te acontece. Em qualquer lugar, a acomodção e o individualismo é praga reinante. As pessoas estão anestesidas por esta pseudo liberdade que permite tudo de ruim, todo achincalhe com as pessoas menos favorecidas, toda a rejeição a idéias libertárias. Qualquer postura mais refratária ao vandalismo cultural e social que sofremos há décadas, será vista como atitude retrógrada ou recebida com frases tipo CAI FORA! VOCÊ QUER BAGUNÇA! VOCÊ É UMA FANÁTICA VOCÊ É UMA RETRÓGRADA, O MUNDO MUDOU!
Diante de um enforcamento como o de Saddam Hussein, que beirou a barbárie, tivemos uma bela amostra, em mini flash, de como o mundo mudou. Não vem ao caso quem ele era. Basta o fato em si. Mudam as palavras, mudam os nomes, as pessoas continuam as mesmas.

AS ÁRVOARES DA MINHA INFÂNCIA

AS ÁRVORES DA MINHA INFÂNCIA
Em primeiro lugar, eu adoro árvores. Desde criança elas marcaram minha vida, pois povoavam o enorme espaço onde minha casa ficava mais pra direita, no meio do terreno. Eu tinha árvore pra cavalgar, uma limeira maravilhosa cujo tronco se abria em dois segmentos e um ficava perto do chão, de forma horizontal e tinha sido cortado a um metro de distância do centro.Outras árvores também tinham seu significado e função. Uma era a bergamoteira de dormir, que se abria em galhos muito juntos e onde eu colocava um pedaço de acolchoado velho, e de onde um dia , ouvindo o silêncio de uma sexta-feira da paixão, tive uma revelação cujo conteúdo esqueci, mas cuja sensação me acompanha até hoje. Havia o pé de laranja-do-céu, onde a gente adorava subir e se deliciar com as frutas muito doces, tendo fugido da mesa de almoço em que quase me obrigavam a comer . Havia ta árvore magarinha da laranja mandarina, que mesmo verde já era docinha. Enfim, nossos dias eram povoados por árvores ,nossas amigas íntimas e tenho certeza, foram trocas muito especiais que tivemos. E, se pudessemos observar tais troncos nas suas camadas, na certa encontríamos sinais não deixados somente pelos períodos de seca ou períodos fecundos, mas algum sinal das nossas mãos e das nossas almas em desenhos sui generis. Assim, da mesma forma, nossos corpos receberam a energia daqueles seres vegetais, de tal forma que nos tornamos um pouco um deles, numa metamorfose produzida em momentos de inocência e sonho.

A JUSTIÇA SERÁ FEITA

O rapaz está sentado numa cadeira estreita encostada à parede e em seu colo,uma caixa branca de papelão que ele segura como se a abraçasse, aninhando-a junto
ao corpo, meio inclinado sobre ela. Seu olhar parece fixar alguma coisa acima das pessoas que ali se encontram. Um leve estremecimento faz ele se remexer , mas
logo volta à passividade inicial.
Estamos no sexto andar de um prédio no centro de uma pequena cidade. Lá embaixo há um movimento anormal para aquele horário. São seis horas da tarde que já virou noite. É inverno e um vento frio faz as pessoas encolherem-se e se aproximarem mais nos pequenos grupos daquela aglomeração totalmente inusitada. Um burburinho incessante e crescente denota grande agitação. Carros circulam contornando a praça, e algum grito ou ruído de assobio corta os ares de vez em quando.
Em sua casa, Teresa não consegue parar. Uma angústia crescente faz com que caminhe de uma peça a outra, tapando os ouvidos de vez em quando, mas sem sucesso. O ruído humano a uma certa distância, lembra a ela algum filme onde multidões nas praças produzem sons ferozes e ameaçadores. Ela sabe porém que tudo é real , absurdamente real e trágico. Sua cabeça está fervilhando e não consegue se fixar em nada. Imagens recortadas surgem em profusão. A vizinha falando sem parar, junto ao muro, tu sabes, tu sabes, sabes, sim, a professora, sim, morta, os rapazes, sim, fugiram , a faca...
Um homem se aproxima e tenta pegar a caixa branca. O rapaz a aperta mais contra o corpo com olhar desesperado. Mas o homem segura firme e arranca-a de seus braços, dizendo que depois ele a recebe, lá onde ele vai ficar. Uma profunda tristeza surge naquele rosto jovem de menino com seus dezoito anos. O policial então pede que ele estenda as mãos e coloca as algemas. Um pequeno estalo e as mãos demoram uns instantes até descer devagar e ir ficar sobre as pernas. Seu tronco se contorce erguendo um pouco os ombros, como para compensar a recente imobilidade das mãos. Mas não se desliga da caixa, segue-a com os olhos fixos, enquanto ela vai em direção a um balcão onde é depositada. E fica a olhar como quem procura o norte numa bússola, estando totalmente perdido.
Lá embaixo há uma multidão formada por pessoas de proveniências variadas. Operários que saíram mais cedo do trabalho sob condição de fazer número.Alunos que saíram mais cedo da escola para participarem do protesto. De voluntários, gente ávida por novidades, aquelas que a qualquer desgraça são as primeiras a comparecer e também as justiceiras que sempre querem ver algum culpado levar o seu castigo. Teresa imagina estes rostos em caretas horrendas e punhos fechados e ameaçadores. Pensa também que são essas pessoas que ajudam a tornar o mundo um lugar mais detestável. Um respeitável senhor é visto dando um chute na porta de um carro. Atitudes absurdas e inesperadas nos cidadãos de bem. Medo? E afinal, por que estão todos ali reunidos?
O filho de Teresa chega em casa e diz que as professoras os mandaram para a praça. Mas diz que muita gente foi embora, inclusive ele. Ela suspira aliviada. Seu filho ali lhe devolve uma certa tranquilidade. Logo tudo estará terminado. E se fosse ele, o seu filho? Não, não queria pensar , mas era difícil assimilar este avesso de vida, este turbilhão que de repente mostrava a face feia daquela cidadezinha onde tudo parecia estar em seu devido lugar. Justiça seria feita. Quem matou tem que pagar. E as jóias que a mulher não queria entregar pros rapazes, ela pensa, e se fosse eu? é claro que eu entregaria! Por que a outra lutou pelas jóias? Tal raciocínio atordoa demais mas ela quer entender. Não havia armas, pegaram uma faca da cozinha , ela lutou, disseram que a faca entrou apenas um centímetro, devia estar com os braços erguidos, dando espaço entre as costelas, que pena, um centímetro fatal, na altura do coração.. Teresa pensa nas jóias que não tem, e se tivesse, daria a vida por elas? Certamente que não. Poderia estar viva, a mulher, livres os rapazes, pelo menos não seriam assassinos...Teresa sente raiva da mulher. Um centímetro, ferimento acidental , por que maldita não entregou as jóias? Eram uns rapazes em sua primeira e única tentativa de assalto, fugiram apavorados quando ela caiu. E ela morreu por falta de socorro. Teresa vai em direção à cozinha, Passa a mão na testa como para afastar os maus pensamentos, Finalmente o ruído começa a diminuir. E ela mergulha fundo nos conteúdos das panelas.
As ruas começam a se esvaziar, dizem que a polícia retirou o rapaz disfarçado, usando um boné e roupas de policial.
A sala do sexto andar agora está vazia e silenciosa. De uma porta lateral, surge uma senhora com balde e vassoura, Anda vagarosamente sem prestar atenção aos vestígios da recente manobra. Inicia com movimentos mecânicos a limpeza, varrendo compenetrada o piso onde restaram alguns vestígios da recente estranha reunião. Algumas xícaras com restos de café, tocos de cigarros nos cinzeiros, algunmas folhas de papel sobre uma mesa, uma canteta caída ao chão.
E sobre o balcão, impávida, a caixa branca de papelão. O que continha? Um par de sapatos. Um par de sapatos que a mãe entregara ao filho, na hora em que saiu da delegacia em direção ao local mais seguro. É bem provável que ele nunca mais a receba. E quando sair da prisão, se sair, já terá aprendido a matar de verdade...